
Calor abrasador. Laura dentro do carro, esgazeada de fome. Direcção: shopping mais próximo, para alimentar a criatura e comprar prenda de aniversário da minha mãe, para de seguida a levar à aula de ballet. 40 minutos para executar estas tarefas. Ora o que poderia acontecer para me encanzinar a engrenagem toda? Operação stop, naturalmente, e com polícias acabadinhos de sair da Academia, com as mãozinhas a tremer por preencher o livrinho de autos.
- Os seus documentos e os da viatura, por favor.
- Boa tarde, senhor agente. Concerteza.
(Procuro os documentos dentro da capa que arquiva cartas verdes desde 2002, selos desde 2002, certificados provisórios de seguro desde 2002)
- Está nervosa?
- Não, senhor agente, porque deveria estar? (ai o raio, mas eu tenho cara de criminosa? Só estou a suar em bica, Sr. Eu-estou-fardado-e-eu-prendo-pessoas-se-me-apetecer)
- Sabe que há um sítio chamado arquivo geral, onde se deve depositar papeis que já não estão em uso. (faz aquela cara paternalista, de quem: vá, procura, tansa, que eu aguardo)
- Sim, por acaso sei. Mas não tenho tido tempo...(um bófia com a mania que é forinha e cheio da piada, sim senhora, não me podia faltar mais nada...)
- Não me acredito que em 7 anos não tenha tido tempo de limpar essa capa... (espera aí, que tu hás-de ter muito a ver com o que eu faço com o meu tempo...)
- Acredite, Sr. Agente, se tivesse a minha vida, ia pedir para me dar! Muito trabalho, muito trabalho...(entrego-lhe os documentos, ciente que ia ser multada, uma vez que a morada da carta de condução não coincide com a da carta verde)
- Pois então diga-me lá a sua morada.
- Qual delas quer, Sr. Agente? A verdadeira, ou a falsa? É que mudei de casa há 6 meses, e ainda não tive tempo de ir actualizar a carta de condução. (Tanga, naturalmente, já saí de casa dos meus pais há 8 anos)
- E mora onde mesmo?
- Em ___.
- Ah, ali à beira da avenida principal?
- Sim, exacto, aliás só existe mesmo essa avenida, não existe mais nenhuma...
- E costuma ir ao café ___?
- Não, não.
- Mora naqueles prédios cor de tijolo, mesmo junto a___? (e de que forma contribui isso para a multa que vais passar, palhaço???)
- Sim, moro.
- Eu vou muito para esses lados. (Sim, e...que é que isso me interessa, escaravelho?)
A este momento, a Laura começa a dizer que vai morrer, que já sente a barriga a fazer barulho, com aquele ar de quem vai desfalecer a qualquer instante, e eu com vontade de lhe dizer que a culpa era toda do energúmeno que, a esta altura, já estava pendurado na janela.
- Sr. Agente, se tiver que me autuar, ia pedir-lhe que o fizesse, porque a minha filha está cheia de fome...(desaparece, mas é, besouro!)
- Desta vez, passa. Mas olhe que estarei aqui novamente dentro em breve, e se não tiver regularizado a situação, vou ter que tomar medidas...
- Muito obrigada pela atenção.
E zarpei dali. Antes que a Laura se lembrasse de lhe perguntar o que normalmente pergunta ao carteiro, ao Sr. do condomínio e ao distribuidor da pizza:
- Tens namorada?